Will Traynor e o direito de dispor sobre a própria vida

A primeira vez que assisti ao filme, eu chorei copiosamente. Primeiro porque Photograph, minha música preferida do Ed Sheeran, toca no momento mais crucial do filme, quando Louisa vai ao encontro de Will para se despedir. Segundo porque me vi no lugar da Lou, sofrendo o luto de perder alguém que amo, mesmo sabendo que essa pessoa estaria partindo em paz.
Quando pude ler o livro, e o li depois de ter assistido o filme, coisa que raramente faço, pois perco muito o interesse em ler uma obra depois de assistir sua adaptação, pude me conectar com os personagens, conhecer mais de suas histórias, suas razões e sofrimentos. Entretanto, tive de ver Will partindo mais uma vez e isso foi tão difícil quanto no filme, embora no livro seja melhor de entender o porquê de sua escolha.
O livro Como Eu Era Antes de Você traz um tema completamente intrigante e polêmico. Na figura de Wil, a narrativa apresenta um personagem que tem o direito de escolher entre a vida e a morte, após se tornar paraplégico e perder sua qualidade de vida devido a isso.
Will Traynor é um jovem inteligente e rico, com humor e psicológico afetados por conta do acidente. Will era cheio de vida, completamente bem-sucedido em seu trabalho e uma rotina muito ativa, bem resolvido com ele mesmo. Após o acidente, sua realidade muda da noite para o dia. Ele vê suas relações sociais mudando e, também, se vê obrigado a buscar constantemente uma melhora física, cujo retorno é mínimo, mesmo a medicina já sendo bastante avançada e suas condições financeiras permitirem o melhor tratamento possível.
A trama começa quando Louisa Clark precisa de um novo emprego e é contratada para cuidar e fazer companhia a Will, sem saber que ele possui o desejo de findar a vida, tendo em vista o atual estado de saúde. Quando Lou descobre do que se trata, já está envolvida e apegada a Will. Ela sofre e tenta fazer o possível para convencer o jovem do contrário, mas, ele se mantém resoluto com seu propósito até o fim e, embora seja difícil para Louisa, ela o apoia e permanece ao lado dele até o último dia de vida. Dessa relação, surge o amor, o cuidado e o impacto que cada um deixa na vida um do outro, ainda que por um curto período de tempo.
Particularmente, esse é um dos meus livros favoritos, mas, tanto o livro, quanto o filme receberam diversas críticas sobre o fim de Will, o que fez a autora Jojo Moyes revelar que o livro é inspirado na história de um jovem galês, o jogador de Rugby, Daniel James. O jovem escolheu a eutanásia, em uma clínica na Suiça, após sofrer um acidente em treino, no qual vários jogadores caíram sobre ele, deslocando as vértebras de seu pescoço, prendendo sua medula espinhal e tornando-o, imediatamente, tetraplégico. Mark e Julie, os pais do jogador, afirmaram que o mesmo sentia como se seu corpo fosse uma prisão, vivendo com medo e repugnância de sua vida diária. (Fonte: Streamings Brasil).
A história escrita por Jojo Moyes trouxe à tona uma discussão sobre a legalização eutanásia, cuja prática, na grande maioria dos países, tem status ilegal. Há alguns países que legalizaram a prática sem consequências penais aos envolvidos, como a Bélgica e a Holanda, ambas no ano de 2002. A discussão sobre a legalização acontece de forma intensa e sempre volta à tona quando casos tomam repercussão internacional.
Não pretendo esgotar a questão da eutanásia, uma vez se tratar de um tema complexo, de cunho jurídico, ético, espiritual e cultural das sociedades, com posições positivas e negativas, afinal, trata do fim da vida de uma forma não natural e, apesar de poder levantar questões sobre os aspectos citados, irei me ater quanto ao posicionamento jurídico, que é o que entendo melhor e me sinto à vontade para escrever.
Em nosso país, o direito à vida é um preceito fundamental, consagrado no texto da Constituição Federal de 1988. Por sua vez, o direito à vida não reconhece ao seu titular o direito de dispor sobre esse bem jurídico, cabendo ao Estado protegê-lo. Apesar disso, a eutanásia não tem legislação específica ou tipicidade penal no Brasil.
Diante da ausência de um tipo penal particular, a prática pode ser, eventualmente, enquadrada como auxílio ao suicídio, artigo 122 do Código Penal Brasileiro, com pena de reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal grave. O consentimento do paciente ou a motivação piedosa de quem pratica a eutanásia não afastam a ilicitude do ato, nem isentam de culpa o praticante.
Aqui, frisa-se três pontos importantes: a necessidade de ressaltar que a morte é uma decorrência da própria vida, devendo ser aceita com naturalidade; a existência de uma linha tênue que distingue eutanásia de suicídio; e o que seria qualidade e dignidade de vida, pois, pacientes praticantes de eutanásia encontram na mesma um fim para seu sofrimento em vida. A eutanásia se classifica como uma das formas de intervenção quando o sofrimento do paciente é insuportável e não há condições de uma vida com dignidade, diferentemente do suicídio, que acontece quando a pessoa, sob a influência de forte transtorno psicológico, busca na morte um refúgio para o sofrimento que se torna insuportável.
Como consequência jurídica, a eutanásia traria ao cidadão o direito de dispor sobre a própria vida, mas, ainda caberia ao Estado a tutela do mesmo, pois, a exemplo de como ocorre na Suíça, a eutanásia é uma opção desde que o paciente tenha discernimento e possa manifestar a sua vontade de forma consciente, o seu pedido seja sério e reiterado, com doença incurável, o sofrimento físico e psíquico seja intolerável e o prognóstico da doença seja morte ou incapacidade grave. (Fonte: RPT Notícias).
Nos casos de Will Traynor e Daniel James, a inspiração para a personagem, a dignidade de vida, para eles, estava além dos direitos básicos associados a qualidade de vida, ditados pelos Direitos Humanos e atrelada ao propósito que tinham. Muito conscientes de que nunca poderiam ter suas vidas de volta e que cada dia de vida seria sofrido sem uma esperança de melhora física, a eutanásia lhes pareceu uma solução. E aqui, caro leitor, deixo de forma explícita um posicionamento óbvio: não acredito que pessoas em tais condições devam optar pela morte, muito pelo contrário, acredito que onde há vida, ainda há esperança.
Por isso, o que mais me chamou a atenção no livro em si, foi o enfoque dado ao apoio de familiares e pessoas importantes nesse momento tão delicado. Algo que se torna extremamente desafiador, pois, a eutanásia vai contra tudo aquilo que fomos ensinados a acreditar desde muito pequenos. Perder pessoas que amamos sempre é dolorido, nunca estamos preparados para a perda, para o fim, mesmo sabendo que é inevitável. Mas, receber esse apoio, nesse processo, para Will significou terminar este ciclo em paz, um conforto para quem fica com a dor da perda.
Contudo, me pergunto o que aconteceria se ele soubesse que possui uma filha, se saber disso mudaria sua vontade, pois, na continuação da história, é revelado a Louisa que Will teve uma filha com uma ex-namorada, fato além de seu conhecimento. Absolutamente nada deteve a determinação dele em partir. Nada conseguiu ser o suficiente para que ele conseguisse enxergar seu estado como a vida que levaria. O fim foi a única solução que ele encontrou.
Confesso que não consigo imaginar como eu reagiria diante de tal situação, sendo eu ou alguém que amo a passar pelo processo da eutanásia, mas, a empatia me faz crer que ter o apoio de pessoas importantes, que compreendem essa escolha e ter respaldo do Estado, para que esse momento não seja ainda mais difícil que o de costume, é fundamental para que o ciclo da vida seja encerrado em paz.